Desconfio dessa gente sorridente...
Que sorrir pros quatro ventos e ainda pro tenente.
O que será que aprontam?
Quando e por qual vertente?
Desconfio dessa gente sorridente...
Gosto mesmo é dessa gente
Que hora sorrir e outra hora range os dentes...
De raiva.
Um só livro de romance acumula mais fantasias que todos os livros de fantasia juntos.
Fuga
Era
uma bela manhã de verão no interior do Nordeste, choveu na noite anterior e
todos se alegraram, os pássaros, as pessoas, nós: os bichos.
—
Dia, seu Juaquim.
—
Dia, seu Tônho. Chuvinha boa em? ‘Vi dizer que o açude lá de cima quase sangrô.
— Ouvi dizer. Ouvi também uma conversa por aí
que o seu Ernesto tá doido de pedra. Um hômi bom, trabaiador, acho que é a
idade chegando.
—
Pois é, seu tônho. O hômi num sai mais de dentro de casa, vive enjaulado.
—
Deus e nossa sinhora tenha piedade dele. Vou indo, seu Juaquim. Até mais ver!
Seu
Ernesto era um homem feito, trabalhador e conhecido na região. Após uns tempos
começou a sentir um vazio, vazio de algo que ele não sabe do quê. Já não sai de
casa, o cantar dos pássaros já não o alegram e atração pela sua mulher já não
sente. Vive achando que a vida não faz sentido, quer morrer, mas não quer se
matar. Teria a vida o abandonado? Ou seria a morte?
—
Meus óios ‘tão cansados, Odete. Não vês? Tudo me cansa, tudo me cansô.
—
Deixa de coisa, hômi. Levanta dessa rede e vem ver a vida.
—
A vida? Ela voltô? Tá de volta?
—
De volta de onde, Ernesto? Tu tá doido?
—
De volta, muié. De volta. Não me enche.
—
Não me enche não me enche. Eu não te encho Ernesto. Você é ranzinza por si só.
Mais
uma vez Ernesto deita a cabeça no travesseiro, esperando o dia que a vida
regressará para ele, ela se foi há muito tempo. Pensa que ela foi ter-se com a
morte, decidir o futuro do triste e velho homem. Como pode sua vida ser
entregue assim ao nada? Digo, a vida e a morte?! Perguntas existencialistas
passaram a fazer parte do cotidiano de seu Ernesto, poderia alguém passar por
uma crise existencial quando bate a velhice?
O homem passava horas espiando o horizonte. O que ele via? Já não
sabemos, o horizonte é ímpar e metamórfico, para mim é minha liberdade, para
seu Ernesto pode ser só um bom lugar para pousar os olhos.
—
A janta tá na mesa, Ernesto. Vai jantar que eu vô tanger as galinha pro
galinheiro.
— Quero cumê hoje não, muié. Tô cum fome não.
Pois
é, aquele vazio em seu Ernesto já não era fome, pouco se importava se havia
carne de um leitão suculento ou só farinha com rapadura. O homem não se
entende, não se conhece. Já não passava de um acordo sem assinatura, de um
poema sem dedicatória, de um trovador sem a inspiração de uma dama.
—
Ô Odete, tu acha que eu tô diferente?
—
Eu já não te conheço hômi, tu num fala comigo, fica só aí de ôio grelado e num
sai dessa rede. Em que é que tu pensa?
—
Muita coisa, muié, muita coisa. Penso nos bicho, penso no hômi também. Por que
é que o hômi sofre tanto?
—
Sofre porque tem que sofrer, Ernesto. Todo mundo sofre. Mas Deus se compadece
dos pobre.
—
Pois ele deve tá muito entertido, se esqueceu de mim.
—
Deixe de arisia, hômi. Num fale besteira que Deus te castiga.
E
assim Ernesto ia tocando os seus dias, um mais duradouro que outro. Já não via
solução, tinha que acabar com aquilo, com aquela angústia, com aquele vazio.
Nunca havia se sentido tão encantado por algo que pudesse acabar com a vida
dele, estava enamorado pela corda da sua rede.
—
Odete, cê sabe que eu gosto muito de tu, né?
—
Sei, hômi. Mas que cunversa é essa?
—
Nada não.
—
Sabe tamém que eu sempre me esforcei pra te dar uma vida boa, né?
—
Sim, Ernesto. Mas não tou te entendendo.
—
Gosto muito de ocê, Odete. Gosto muito.
Era
cedo, os galos cantavam no sítio do seu Ernesto, que já não é mais dele. Dona
Odete levantou para tirar o leite da vaca e de súbito espantou-se ao ver a rede
vazia. Saiu aos berros pelo marido porta a fora. Andou o dia todo e não o
encontrou. Não teve jeito, tinha que voltar pra casa, não ia passar a noite
perambulando. Seu marido estava estranho há alguns tempos, e muito mais nos
tempos recentes. O pensamento de um possível suicídio lhe vinha em mente, não
havia como escapar. Volta pra casa desalmada, ao adentrar encontra um pequeno
pedaço de palha de milho seca, com umas poucas palavras escritas com carvão:
—
Fui ter no horizonte.
Ode a abstinência
Dei-lhe o que acho ser o último adeus
Pois quando não se quer machucar alguém
Temos que fazer uso de todas as cartas do baralho
Sou poeta falido, pirata, desvairado
Tu és o que não mereço o que me é pecado
Abster-se de ti é duro, rigoroso, castigo para
pobre-diabo
Mas sofrerei tudo isso só para te ver com um riso
estampado
Privo-me do teu beijo doce, dos teus olhos amendoados
Eles já não me fazem bem, morena. Só me deixam mais
culpado
Tu mereces alguém melhor, um engenheiro ou um empresário
E eu sou só um visionário visando o teu amparo
Eu vou ficar bem, mesmo que seja mascarado
Com um sorriso estampado
Um coração arrombado
E um pensamento obnubilado.
A poesia
muitas vezes não nos permite que a coloquemos no papel, permite apenas senti-la
na alma.
Amo a
natureza. A chuva chora comigo; o vento também é revoltado, a lua olha para mim
todas as noites e o sol ensina-me que o amanhã é sempre um novo dia para
“nascer” de novo.
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